Temer foi usado para um objetivo maior !
Isabel Lustosa: Os mesmos que derrubaram Dilma, podem descartar Temer
Isabel Lustosa: Os mesmos que derrubaram Dilma, podem descartar Temer. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff não foi o desfecho do golpe e muitas surpresas negativas ainda podem vir por aí.
A avaliação é da historiadora e doutora em ciências políticas Isabel Lustosa. Para ela, contudo, a reação que surge nas ruas à destruição de conquistas que vêm desde a Constituição de 1988 pode complicar os planos das forças que tomaram o poder.
Joana Rozowykwiat
“A segunda etapa do golpe é a eliminação do Lula como ator político”, afirma Isabel, em entrevista ao Portal Vermelho, concedida nesta quinta (8).
Ela prevê ainda que, sem popularidade e citado em delações da Lava Jato, o presidente Michel Temer pode ser descartado por seus aliados, após a virada do ano.
Desta forma, uma eleição indireta poderia levar ao poder alguém que dê ao governo do golpe certa imagem de moralidade e eficiência, com o objetivo de levar adiante o programa de desmonte do Estado brasileiro.
“Esse é um longo processo, que começa ainda durante a eleição e alcança seu ápice na decisão do Senado. Mas é um processo, não é assim: aconteceu o impeachment.
Ao longo desse tempo, uma espécie de caldo foi se formando, de circunstâncias políticas e jurídicas, que acabou desembocando nisso, que não é o final da linha ainda. Ao meu ver, ainda há as circunstâncias de consolidação do golpe. Ainda tem muita estrada e as coisas ainda nos surpreenderão negativamente”, diz.
Ruptura radical
De acordo com ela, o impeachment lançou no país em uma situação “dramática”, e a plataforma anunciada pelo novo governo deixa clara a total ruptura com o projeto eleito pelas urnas. Por outro lado, ajuda a desconstruir o discurso dos que tentam igualar políticos e projetos.
“Muita gente dizia: ‘ah, é a mesma coisa". Mas, mesmo o governo Dilma - com os defeitos que tinha e as tantas concessões feitas ao partido golpista, o PMDB - não se compara ao fosso que se abriu entre a realidade que a gente vivia até abril desse ano e a que se constituiu com as políticas implementadas agora. É uma ruptura radical, que vai se confirmando em práticas inclusive repressivas.
O retrocesso atinge todas as áreas, das políticas sociais até coisas consolidadas pela Constituição de 1988, a CLT, os recursos para saúde e educação”, enumera.
Questionada sobre o que projeta para o próximo período, Isabel – que também é escritora e trabalha com pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa – destacou um aprofundamento da repressão e da investida contra as lideranças de oposição ao impeachment.
“A destruição e o cerceamento das liberdades do ex-presidente Lula são evidentemente um alvo desse conjunto de forças que se organizou para perpetrar o golpe. E acho que o círculo vai se estreitar em torno da repressão.
E todo o aparelho jurídico e policial que está aí, trabalhando diuturnamente contra as esquerdas e as lideranças que podem, de alguma forma, deter esse processo, não vai parar enquanto não eliminar o risco de que, numa eleição, sejam eleitas pessoas que representem uma oposição a esse projeto que está sendo implementado”, opina.
Temer, carta fora do baralho
Poucos meses após assumir, o presidente Michel Temer amarga baixos índices de aprovação. Nas cinco capitais de maior população do país, a rejeição (Ruim/Péssimo) ou a indiferença (Regular) ao governo variam entre 77% e 82%, conforme mostrou pesquisa Ibope.
Temer apoiou o impeachment com o argumento do combate a corrupção e montou um gabinete mergulhado em escândalos e denúncias de irregularidades; defensor do discurso da austeridade, retira direitos da população, mas fez aprovar o maior déficit primário da história do país, que tem lhe permitido distribuir benesses a aliados.
Diante de uma base de apoio fisiológica, várias divergências têm sido externadas no seio do golpe. O próprio PSDB dispara contra a gestão, faz exigências e ameaça abandonar o barco.
Para Isabel, o vice que virou titular não deve governar por muito tempo. De acordo com ela, as forças por trás do impeachment vão trabalhar – com o apoio da “mídia, tentando apagar todas as burradas que ele fizer” – para mantê-lo no cargo até final do ano, já que, caso saia antes desta data, eleições diretas terão que ser convocadas.
“A minha impressão é que Temer será descartado logo depois de 31 de dezembro”, afirma.
Segundo a historiadora, os mesmos expedientes que agora são usados contra Lula e lideranças ligadas ao PT podem servir para afastar o aliado que vai se tornando indesejado.
A ideia é dar ares de legitimidade à gestão – “uma cara de ‘vamos moralizar’” –, para poder “fazer o resto do serviço, terminar o processo de desmonte daquilo que foi construído não apenas nesses 13 anos, mas desde 1988”, crê a pesquisadora.
“Vão descartar esse PMDB corrupto e retomar as rédeas. As forças que estão produzindo esse golpe têm interesse em uma imagem de eficiência, em uma quase legitimidade, que pode ser tentada pela eleição pelo parlamento de um [Henrique] Meirelles da vida, ou de alguma figura que tenha mais carisma e popularidade, e por um parlamentarismo que ponha para andar esses projetos destruidores da Constituição de 1988”, projeta.
A emergência da reação
Colocar em prática esses planos, contudo, não deve ser tão fácil como se esperava.
Se as ruas andaram silenciosas na reta final do processo de impeachment, desde o afastamento definitivo de Dilma Rousseff, agora estão repletas de gritos de “Fora, Temer”. A frase estampa muros, camisetas. É entoada não só em manifestações organizadas, mas em shows, exposições e familiares festas de formaturas.
Isabel observa que há toda uma parcela da população que começa agora a se dar conta do que representa essa ruptura de projeto. “(...) A empregada doméstica, os trabalhadores que viram seus filhos entrarem nas universidades, essa juventude. A gente começa a perceber que as coisas vão pesar negativamente contra eles”.
Para ela, depois da pouca reação no curso do impeachment, foi uma surpresa a emergência desse movimento de oposição, que incorpora “um sentimento nacional, que parecia meio amortecido”, diz.
“A gente não sabe que Brasil é esse, que está lá nos grotões, que recebeu médico, de gente que estava na roça e o filho está se formando. A gente não sabe ao certo o que aconteceu, a transformação da qualidade de vida, a água que chegou nas casas, a energia elétrica.
A reação a esse processo de destruição de tudo isso que foi construído talvez seja mais complicado do que aparentemente os que urdiram esse golpe tenham esperado”, completa.
De acordo com ela, a presença da juventude nas manifestações e as movimentações de Lula pelo país vão, aos poucos, ganhando espaço na disputa de narrativa.
“Essas coisas se multiplicam de forma mais sutil que um evento convocado por uma grande rede de televisão, por exemplo, mas vai formando um substrato”, defende.
“Fora, Temer”, bandeira de unidade
Isabel avalia que esse “acordar” só agora talvez tenha sido motivado pelo fato de que a bandeira “Fora, Temer” pode ser mais forte que a “Volta, Dilma”. Ela ressalta que havia uma divisão grande da esquerda sobre o governo Dilma, em especial no segundo mandato, quando políticas de ajuste rechaçadas nas urnas foram implementadas pela gestão.
“É mais fácil unir em torno do combate ao golpe e aos usurpadores – que são pessoas cujos processos jurídicos e criminais já desmoralizam a situação política deles – que em torno da questão um tanto ambígua da posição da Dilma, com relação especialmente ao arrocho, à política econômica neoliberal que ela, pressionada pela oposição e até por alguns aliados, estava adotando após a eleição de 2014”, compara.
Excessos do golpe podem fortalecer resistência
A historiadora revela a expectativa de que se fortaleça uma resistência em defesa do Brasil, agregando inclusive setores de centro, “que começam a se dar conta da violência que está ocorrendo”.
“Talvez o golpe tenha ido longe demais. Alguns que tinham certas expectativas podem ter sido surpreendidos pelo excesso.
As propostas relacionadas a direitos adquiridos devem estar chocando inclusive setores que eram contra o governo petista. Minha expectativa é de uma resistência democrática, que envolva não só a esquerda, mas uma parte do centro, uma parcela de liberais conscientes com vontade de ver o Brasil não mergulhar nesse buraco negro, com a venda do patrimônio nacional, com a liquidação dos direitos dos trabalhadores, quase um estado de anarquia que está se tentando implantar”, afirma.
Segundo a cientista política, “as coisas podem se tornar muito dramáticas” em um futuro no qual o Sistema Único de Saúde e a Consolidação das Leis de Trabalho, por exemplo, sejam esfacelados.
“Tenho esperança de que o bom senso pode fazer as pessoas se unirem em defesa do Brasil”.
Diretas Já
Indagada sobre o movimento por novas eleições diretas, algo que ganha mais adeptos com o passar dos dias, Isabel defende que bandeiras legítimas, voltadas para a valorização do voto e da participação popular, merecem estímulo.
Mas ponderou sobre a viabilidade da proposta: “Não sei, nas condições objetivas, com tantos casuísmos sendo implementados pelo Parlamento, que tipo de armação eleitoral eles vão promover, no sentido de fazer uma eleição nos moldes que eles querem.
A gente já viu que as leis são completamente elásticas. O próprio impeachment é exemplo claro disso, de como a lei pode ser dobrada para atender aos interesses do grupo que está no poder”.
Por outro lado, ela reconhece que o movimento ganha forças, torce por ele e relembra a primeira campanha pelas Diretas Já. Durante o regime militar, o movimento foi crescendo e, se não conseguiu fazer aprovar a emenda que estabelecia o pleito direto em 1984, teve grande papel na abertura política.
Contra os retrocessos
Para Isabel, para além do “Fora, Temer”, o ideal seria que as manifestações tivessem como foco os ataques a direitos que o atual governo promove.
“Há uma série de questões que precisam se constituir como bandeira de luta – é o SUS, a educação gratuita e laica, a questão do petróleo, enfim... e é impressionante como esses temas voltam.
(...) São causas não só desse momento. É preciso acordar as consciências, para que essas sejam coisas dadas. É como se a gente tivesse que relembrar as bandeiras da revolução francesa – liberdade, igualdade, fraternidade, direitos do homem. São essas coisas que estão ameaçadas”, cita.
Capital financeiro, arrocho e individualismo
Ao se referir a estes temas, pelos quais, depois de tantas lutas, ainda é preciso brigar, Isabel destaca que, por trás dos ataques de ontem e de hoje, estão forças muito bem estabelecidas.
“É o capital financeiro, hoje, dominando o mundo, que se fortaleceu muito e está destruindo a economia europeia e até americana, com a filosofia do arrocho, a filosofia neoliberal, o corte de direitos”, aponta.
De acordo com ela, trata-se de algo que foi, inclusive, incorporado por parte de forças mais à esquerda no mundo. “Basta ver aí o [presidente francês, François] Hollande, pessoas que vinham de uma origem mais à esquerda e acabaram comprando, porque parecia científico, o discurso neoliberal.
E isso tudo associado a um tipo de filosofia pós-moderna, de que ‘tudo é igual, nada é melhor’ - como diz o tango -, que acabou destruindo determinados valores de humanidade que haviam se consolidado a partir do século 19”, lamenta, citando ainda o que chama de “individualismo nocivo” e “meritocracia irreal”.
Para ela, de certa maneira, a queda do Muro de Berlim e a revisão da leitura do marxismo, que geraram uma espécie de negação de teorias e de um patrimônio que marcou a formação de consciências jovens no passado, também tem um peso no estado de coisas atual.
“Hoje você não tem grupos de leitura, para avaliar determinados textos que ajudavam a dar sentido à luta das pessoas. Hoje essa luta acaba sendo um pouco errática, justamente pela ausência de uma base de pensamento que dê o norte”, analisa.
“A mídia é o centro de tudo”
Estudiosa da imprensa brasileira, com alguns livros lançados sobre o tema, Isabel destaca que as empresas de comunicações tiveram papel decisivo não só no impeachment, como também têm dominado a política brasileira.
“A mídia é o centro de tudo. Ela acossou o Supremo [Tribunal Federal] de forma tão definitiva, que eles não se movem mais se não tiverem o aval da mídia. É algo quase monstruoso”, condena.
Segundo a historiadora, “o esforço de procuradores para aparecerem na televisão e agradarem às empresas de comunicação” é a prova de quanto esse poder se “agigantou” e se tornou “perigoso” para os destinos do país.
“Há uma espécie de ditadura midiática. (...) O Brasil virou refém. Não se faz nada sem agradar os verdadeiros donos do país, que são as grandes empresas de mídia”, diz, lamentando que os governos petistas não enfrentaram tal situação.
Ditadura policial-jurídico-midiática
Em outro momento da entrevista, ao falar sobre a repressão às manifestações contra Temer, ela voltou a citar o papel da mídia.
“Você tira a visão de um jovem e isso não sai na grande imprensa. Isso não aconteceu. Sua tia não vai saber que isso aconteceu. É uma articulação muito poderosa. A opinião pública não toma conhecimento. E, com isso, vai se formando uma ditadura policial-jurídico-midiática, com a subordinação do parlamento, cada vez mais obediente a essa articulação”.
Ainda sobre o uso da força para conter os protestos, ela se diz preocupada com o quadro atual.
“Na medida que vemos as imagens, cada vez os policiais que agridem têm menos receio de mostrar a cara. Sabem que estão garantidos pelo governo e pela justiça”, condena, chamando a atenção para o que ela classifica como a criação de uma “casta” dentro do serviço público, alinhada à direita.
“Há aí uma força de direita muito grande - com várias exceções, como o juiz que soltou os jovens [presos antes da manifestação contra Temer no último domingo (4)] -, que é assustadora. São pessoas com salários extraordinários, que formaram uma espécie de casta do serviço público e que são principalmente de direita”, coloca.
Apesar da preocupação em relação à escalada da repressão, ela avaliou que, contra este horizonte de retrocessos, a saída é “a resistência construída pelas novas forças que estão aí, os futuros donos do Brasil”, afirma, referindo-se à juventude.
“Temos que torcer para que se continue a trabalhar na formação das consciências sobre o que está acontecendo de fato no Brasil.
Mas agora a bola está com essa misteriosa população que está aparecendo e se manifestando e sobre a qual os formadores de opinião podem, no máximo, dar uma contribuição e vibrar junto com ela”, conclui.
Isabel Lustosa - Escritora, Historiadora e Doutora em Ciências Políticas