As 13 músicas que inspiram Lula

 



Gustavo Conde

A canção popular é elemento constitutivo da democracia. Toda a narrativa da história política do Brasil está atravessada pela canção popular. O Brasil é o país politicamente mais musical do mundo, uma vez que a musicalidade aqui transpira por todos os poros e praças. A política está impregnada de canção popular e a canção popular está impregnada de política e das dores que subjazem a essa política, tão afeita a golpes, aquarteladas e congêneres.

Não admira que a própria encarnação da democracia brasileira dos últimos 40 anos – um trabalhador filiado à cultura simples do povo que chegou à presidência da república – tenha uma conexão profunda com a canção popular. O “Lula ouvinte” inspira e transpira música popular. Esteve e está do lado dos maiores compositores da música brasileira desde sempre.

Chico Buarque, Gilberto Gil, Elis Regina, Gonzaguinha, Aldir Blanc, João Bosco, Zeca Pagodinho, Chico César, dentre tantos outros, fazem parte da vida política e cotidiana de Lula. A admiração é recíproca e a celebração fraternal, idem, havendo até espaço para o futebol. Procure-se imagens de Lula ao lado desses monstros sagrados da MPB e encontrar-se-á registros históricos, sensíveis e plenos de sentido democrático.

Lula é praticamente um compositor ele mesmo. O “olê, olê, olê, olá, Lula, Lula” é como que uma extensão melódica de sua presença política – a despeito de sua conexão impressionante com a canção ‘Olê, Olá’ de Chico Buarque, datada de 1966. Os discursos históricos de Lula, seu sorriso habitual, seu enunciado característico, sua verve, seu ritmo, seu ethos, seu tom conciliador, tudo isso é música para o sentido de democracia do brasileiro e é preciso que se diga isso sem meias palavras.

Como Lula é o genuíno homem do povo, não admira que sua cultura musical também seja oriunda dessa mesma dimensão. Lula ama a canção brasileira como qualquer outro cidadão brasileiro. Passou os anos de chumbo, ouvindo Gonzaguinha, Chico Buarque, Luiz Gonzaga, Elis Regina, João Bosco, Belchior, Gilberto Gil e tantos outros cantores e compositores que encarnam e encarnavam o sentido popular de maneira tão visceral.

Lula, ademais, não tem uma cifra sequer de ingenuidade. Como todo catalisador social que lidera processos simbólicos, ele sabe que a canção popular é um manancial infinito de sentidos e conexões estratégicas, um patrimônio que, a despeito de toda a sua dimensão estética, representa um thesaurus de enunciados e significações de apelo popular investido de verdade social.

Lula emana não apenas o poder mobilizador da canção, ele a empodera. Durante todo o seu governo (2003-2010), convidou músicos populares, não raro desconhecidos, para se apresentarem em cerimônias oficiais da presidência.

Em seus atos pela democracia, antes de ser preso pela justiça política de Curitiba, Lula convidou, através de sua assessoria, músicos do país inteiro para se apresentarem ao lado dele nas manifestações históricas pela democracia.

Consagrados, anônimos, ativistas, discretos, os músicos preenchiam seus atos e davam o tom da emoção e do sentido político que ali teria seu espaço de emergência mais uma vez deflagrado em um Brasil destroçado por um golpe. Artistas das causas políticas de afirmação, como signatários das causas LGBTT, do movimento negro, das nações indígenas, de todo segmento artístico e social, estavam e estão sempre ao lado de Lula para demarcar, de maneira clara, de que lado da história eles estão – e isso já ocorre há mais de 40 anos.

Em um dos últimos atos pela democracia sob a liderança de Lula, estavam lá Renato Braz cantando “Cálice” de Chico Buarque de Hollanda e Ana Cañas cantando “Velha Roupa Colorida” de Belchior. Chico César sentava-se ao chão do palco da Casa de Portugal e Raduan Nassar fazia seu discurso de uma frase só: “eleição sem Lula é golpe”. Um dos maiores intelectuais do mundo, Noam Chomsky, figurava em vídeo em defesa de Lula e até Odair José apareceu para dar o seu abraço. 

Não há precedente. Não há figura, política ou não, dotada de conexão maior com a arte popular e com o respeito e a admiração internacional. Lula transpira política e arte, política e música.

Não admira que sua seleção de canções para celebrar liturgicamente o aniversário de sua companheira Marisa Letícia, no último dia 7 de abril no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, tenha sido tão emocional e política. Lula e Marisa eram apaixonados pela canção popular e, como qualquer casal que se apaixonou e se conheceu nos anos 70, a música lhes serviu de pano de fundo passional e como forma de resistência política.

O repertório escolhido por Lula foi esse:

Asa Branca – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (1947)

Maria Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant (1978)

O que é O que é – Gonzaguinha (1982)

Apesar de Você – Chico Buarque (1978)

Mama África – Chico César (1995)

Vaca Profana – Caetano Veloso (1984)

O Tempo não Para – Cazuza (1988)

Vapor Barato – Wally Salomão e Jards Macalé (1971)

Sangue Latino – João Ricardo e Paulo Roberto (1973)

Podres Poderes – Caetano Veloso (1984)

A Voz do Morro – Ze Ketti (1965)

Deixa a Vida Me Levar – Zeca Pagodinho (2004)

Sujeito de Sorte – Belchior (1976) 

A ideia do presente ensaio é analisar as 13 canções selecionadas por Lula, com breves comentários técnicos filiados a uma escola de interpretação chamada “semiótica tensiva”, que tem nos autores Claude Zilberberg e Luiz Tatit sua expressão teórica consagrada. Entre uma glosa e outra, serão feitos comentários sobre as possíveis conexões e associações políticas dessas canções, devidamente contextualizadas pela cenografia histórica. 

O conceito de “eu cancional” irá aparecer com muita frequência e ele nada mais é do que o “eu lírico” dos poemas, aplicado à canção. Tecnicamente, a ‘canção’ é uma peça musical composta de duas dimensões: letra e melodia. A letra não é um poema, ela tem uma estrutura própria de construção de sentido que requer um olhar também específico. Isso pode ser explicado com a seguinte premissa: uma letra não produz o seu sentido cancional separada da melodia. A melodia da canção participa intensamente de seu caráter semântico e tanto melhor para o leitor deste ensaio se esta lhe for familiar.

A análise semiótica exige e enseja que se ouse nas associações de sentido. As canções populares são, em geral, muito metafóricas e a chave de uma interpretação consistente passa por uma visão global do texto da letra. Os elementos que aparecem na letra de canção, sejam eles da natureza, da urbanidade, da fauna, das grandezas astronômicas e históricas, são fatalmente apenas elementos expressivos de significação interna da canção. Eles servem ao compositor como instrumentos para gerenciar as acelerações passionais, por assim dizer.

Esse gesto do cancioneiro constitui a grande fruição e experiência estética que é sentir uma canção popular na inteireza de seu regime de significações. A análise semiótica entra nesse rol das fruições: há um prazer muito singular em mergulhar no sentido de uma canção popular. Há ali, profundo sentido de verdade e humanidade e, mais do que isso, um verdadeiro mapa melódico que mostra o DNA da emergência dos sentidos do mundo e das coisas. 


Asa Branca – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (1947) 


Quando olhei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação

Aqui, o eu cancional significa a terra como um território árido e quente. Postula esse sentido de maneira sofrida, mas levemente esperançosa, a ponto de compará-lo com uma fogueira de São João. A seguir, o eu cancional interpela Deus e o questiona, do fundo de sua alma devastada pela seca, acerca da maldade subscrita no gesto. Deus é personificado e trazido para perto do querelante, cuja a disjunção passional não se projeta na imagem de uma mulher amada, mas na terra amada, que lhe nega o amor da fertilidade. 

Simples entender porque essa canção cala tão fundo em Lula e na maioria do povo brasileiro que habita a região nordeste (Asa Branca é considerada o hino do nordeste). Simples, porque Lula fugiu da seca em 1952, vindo num pau de arara aos 7 anos de idade, juntamente com sua mãe Eurídice (Dona Lindu) e mais 7 irmãos, numa viagem que durou 13 dias - ele chegou no Guarujá em 22 de dezembro de 1952. 

Ou seja: Lula viveu a seca de Asa Branca na própria pele e sabe o que aquela canção quer dizer, muito mais do que qualquer especialista, incluindo este missivista que vos fala. O sentido de uma canção popular não é apenas o sentido técnico, mas o sentido histórico, visceral e de conhecimento de causa. 


Maria Maria – Milton Nascimento e Fernando Brant (1978) 


Vejamos, agora, três fragmentos de estrofe de “Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant:


(...)

De uma gente que ri

Quando deve chorar

E não vive, apenas aguenta


Mas é preciso ter força

É preciso ter raça

É preciso ter gana sempre

Quem traz no corpo a marca

Maria, Maria

Mistura a dor e a alegria

(...)

Possui a estranha mania

De ter fé na vida


Esta canção de Milton Nascimento e Fernando Brant lida com significações opostas e delas tira a sua dicção cancional. “Dor e alegria”, “uma gente que ri quando deve chorar” e “uma estranha mania de ter fé na vida” são enunciados que marcam essa dinâmica tensa dos contrários e apresentam, por isso mesmo, uma densidade retórica de forte apelo popular. 

O eu cancional, aqui, não está em busca de sua porção espiritual apartada passionalmente, mas ele relata a força espiritual de uma mulher que, com sua luta, inspira e seduz. Esse traço do caráter dessa mulher extravasa do mero relato narrativo para um regime de projeções intersubjetivas: o eu cancional deseja a força que emana de Maria, que não é apenas Maria: é Maria, Maria. 

O nome de Maria é duplicado porque ela é o dobro do que suporta uma pessoa em condições “normais”: ela se desdobra em mil Marias que executam mil funções e ainda inspiram o sujeito observador-narrador para que ele se lance ao ato de sua luta por algum objetivo, que pode ser o amor ou a própria democracia.

Mais uma vez, fica evidente o parâmetro de escolha de Lula para esta canção: trata-se de uma canção de chamamento, de suspensão do imobilismo. O nome Maria também se associa, por extensão, a Marisa Letícia e Dilma Rousseff, mulheres corajosas, inovadoras e vítimas da misoginia, do gaslighting e do sufocamento escravocrata-machista tão recrudescente na sociedade brasileira.

Poder-se-ia perguntar: mas “Maria, Maria” traz alguma cifra semântica de vitimação da mulher? A resposta é sim. Porque o gesto enunciativo de se ter que decupar e depurar as virtudes éticas de uma mulher pressupõe que essa mulher precise ter suas virtudes divulgadas. Ou seja: é preciso dizer aquilo que não se diz. 


O que é O que é – Gonzaguinha (1982) 


“O que é o que é”, de Gonzaguinha, é uma canção múltipla. Ela é narrativa, fragmentária, passionalizada de maneira irregular e distribuída em diversos sentidos condutores, sendo que o mais forte é o sentido da própria “vida”. Um verso desta canção, em especial, define toda a sua massa de significações e proposições simbólicas: 


Sempre desejada

Por mais que esteja errada 


A vida é desejada, por mais que esteja errada. Essa formulação cancional é dotada de uma força passional arrebatadora porque lida diretamente com o sentimento mais visceral que se pode imaginar ou quantificar no interior das timias passionais humanas. Trata-se do amor pela própria vida, do gesto primordial de se respirar sem que ninguém ordene, diga ou te obrigue a isso. 

A densidade de um verso com estas características leva o eu cancional, desdobrado em ouvinte da canção, a manifestar uma profunda conexão com a própria vida e fazer uma pequena reflexão sobre seu comportamento social: se a vida está errada ou me faz sofrer, mesmo assim eu a desejo. 

Isso está co-relacionado com o tradicional discurso de Lula de que não se pode ficar “reclamando da vida”. A canção de Gonzaguinha capta essa timia social, esse sentimento popular que conduz à passagem ao ato, e o encaixa em uma canção que mobiliza ainda uma série de sentidos de celebração à vida, tão intensos e múltiplos que lançam o ouvinte da canção em um turbilhão se sentimentos tão denso que só o sentido de “criança” pode reorganizá-lo na recondução do refrão: o eu cancional precisa ficar “com a pureza das respostas das crianças”.


Apesar de Você – Chico Buarque (1970)


Noutra ponta do cancioneiro proposto por nosso mais célebre agente democrático, está “Apesar de Você”, de Chico Buarque de Hollanda. A canção tem diversos sentidos consagrados e todo um folclore estabelecido. Foi composta em 1970, tendo o presidente militar Emílio Garrastazu Médici como endereço consagrado do “você”. Foi logo censurada, em 1971, devido ao imenso sucesso que fazia. 

Não cabe aqui, entrar em mais sentidos históricos ou na farta profusão no ensaio crítico dos anos 70, 80 e 90. Uma singela contribuição seria tecer um ou outro significado semiótico. Lancemo-nos ao refrão:


Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia


Eu pergunto a você

Onde vai se esconder

Da enorme euforia


Como vai proibir

Quando o galo insistir

Em cantar


Água nova brotando

E a gente se amando

Sem parar 


O que chama a atenção aqui é o sentido de ‘galo’, que canta e que anuncia alguma coisa ainda não totalmente evidente. Posto está que há um antissujeito muito poderoso na canção, que bloqueia todos os sentimentos de liberdade. Esse antissujeito é o “você”. 

Como contrapartida a essa força que impera e que limita a livre narrativa do eu cancional – que se lamenta e avança em sua missão ingrata e poética de narrar sua dor e frustração – há, no entanto, uma série de elementos menos poderosos, mas investidos de cifras obstinadas, espontâneas e fatais que vão se adensando e promovendo um sentido de confrontação ao “você” opressor, de maneira similar a uma insurreição popular – a diferença é que é, no interior da canção, uma insurreição de sentidos e de acelerações.

O eu cancional se pergunta: como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Não se pode proibir um galo de cantar, isto está posto e pressuposto pela própria pergunta, o que gera uma paralisação do poder do antissujeito. Ademais, a escolha do animal que fatalmente cantará tem intertextos proeminentes: o galo bíblico que anuncia a traição de Judas e o galo rural, que acorda o trabalhador para a lida no campo. Chico Buarque dispensa comentários no que diz respeito a sua virtuosidade composicional e letrista: o elemento “galo” é muito forte e está encaixado de maneira fortemente persuasiva.

Por mais que o “você” opressor, vingativo, inseguro, dotado de força institucional das mais diversas ordens, imponha sua vontade por meio da violência subscrita no contexto histórico da canção, o galo está lá e irá cantar. 

Esse galo pode ser transposto para o nosso presente histórico, a título de explicação pedagógica e desdobramento tímico: o galo é a Gleici Damasceno, a vencedora de um reality show promovido por uma emissora de televisão que encarna esse “você” violento e anti democrático. Ao vencer o reality e gritar “Lula Livre” em cadeia nacional, Gleici encarnou o galo de Chico Buarque. Ou: por mais que tentem calar a verdade, ela irá sempre emergir, seja de lugares consagrados, seja de lugares inusitados. 


Mama África – Chico César (1995) 


Avancemos nas nossas breves análises para cada canção selecionada por Lula. Temos, agora, Mama África, canção de Chico César, de 1995. Mama África tem um sentido similar ao de “Maria, Maria”: trata-se de uma mulher lutadora, que trabalha, cria os filhos e doa um volume de carinho infinito que só uma mãe e capaz de doar. Essa conjunção de virtudes é o motor semiótico da canção. 

Essa canção, no entanto, traz uma singularidade interessante: ela é dirigida a uma criança – o filho ou filha de Mama África - e faz dessa tensão sua busca passional pela conjunção. Esse percurso simbólico tem grande força narrativa porque se trata do amor mais intenso, verdadeiro e necessário à sobrevivência, que é o amor do filho pela mãe e da mãe pelo filho. A primeira parte da canção deixa isso claro:


Mama África, tem

Tanto o que fazer

Além de cuidar neném

Além de fazer denguim

Filhinho tem que entender

Mama África vai e vem

Mas não se afasta de você 


A Mama África – evidentemente, uma mulher negra – trabalha como empacotadeira nas Casas Bahia, cuida da casa, dá carinho e ainda tem que lidar com a carência de seu filho ou filha que sente a sua falta diante de tantos compromissos. Ela explica ao rebento, num misto de primeira e terceira pessoa - como sói acontecer na linguagem social entre criança e adulto – que, apesar de ela estar atarefada com seu trabalho, ela jamais se afastará dele.


Vaca Profana – Caetano Veloso (1984) 


Vaca Profana é uma tese. Caetano evoca um conjunto vertiginoso de intertextos relativos ao sentido de cosmopolitismo para consagrar em um refrão um grito catártico que deseja o “leite bom” diretamente das tetas desse animal gregário, inscrito no regime mais profundo das simbologias humanas.

Faz isso, não sem antes significar e preparar a simbologia social do animal. Na primeira estrofe, ele “seleciona” sua vaca sagrada e específica que irá resgatá-lo, com seu leite, da cegueira estética que grassa em um mundo tomado por referências culturais vertiginosas, em forma de “manada”.


Vaca profana, põe teus cornos

Pra fora e acima da manada


O eu cancional aponta para um animal em especial em meio ao gado populacional que passa ao largo das iguarias culturais que o mundo oferece: “Vaca profana põe teus cornos pra fora e acima da manada”. O eu cancional quer “ver” a vaca profana. E ela é profana porque carrega consigo um sentido popular singular que nenhuma outra vaca integrante da “manada” poderá ser capaz de fornecer, filiadas ao processo canônico e bovino das contemplações estéticas pré existentes. 

A partir desta vaca devidamente selecionada para conduzir o eu cancional por um mundo imaginário da arte espalhada pela urbanidade, o eu cancional desfila sua série de referências e sentidos artísticos e culturais que lhe serve de “ração” diferenciada: “derrama o leite bom na minha cara e o leite mal na cara dos caretas”. 

Passa por Madri, Barcelona, Londres, Andaluzia, Tel Aviv, Nova York, Paris, São Paulo, e vai tecendo e selecionando os sentidos que lhes são mais sedutores em meio à profusão de informações estéticas e artísticas que sufocam e identificam essas cidades. 

Vale mencionar um dos versos mais célebres do compositor que figura nesta canção: “de perto, ninguém é normal”. Ele se inscreve nesse regime de conhecer-desconhecer o mundo e suas referências culturais: o eu cancional também sabe ser “careta” e sabe, na vertigem das referências, usufruir de um sentido vulgar da arte. Alega, para isso, seu distanciamento do sentido de “normal”, ademais, associado à normatividade das sociedades, tão hostil ao pensamento estético quanto opressor às liberdades políticas. 


O Tempo não Para – Cazuza (1988) 


Cazuza instaura com sua canção-legado de 1988, um sentido sombrio de pessimismo político, mas, ao mesmo tempo, impõe a maldição da história e do tempo ao antissujeito que massacra e oprime a população brasileira: a corrupção da elite e o ceticismo de classe. Cazuza é extremamente atual e traça quase que cirurgicamente uma cenografia que o país acabou de testemunhar. Vamos a um trecho da canção: 


Nas noites de frio é melhor nem nascer
Nas de calor, se escolhe, é matar ou morrer
E assim nos tornamos brasileiros


Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
Transformam um país inteiro num puteiro
Pois assim se ganha mais dinheiro 


O eu cancional se move na canção em busca de respostas para uma sociedade tão desigual quanto desequilibrada. É uma busca pessoal, árdua, agônica, catártica, que caracteriza um eu atormentado que precisa de maneira urgente de uma significação complementar para sua existência política e filosófica. 

O trecho inicial acima descreve o dilema do brasileiro: não há como escolher nem o próprio nascimento. É dessa significação limítrofe de sobrevivência que o eu cancional extrai seu sentido de “brasilidade” e percorre seu caminho narrativo. 

Após estabelecer esse traço identitário, o eu cancional invade o registro coloquial e interlocutório para desabafar sua incompletude sígnica. Ele vivencia a dor de ser rotulado e assiste um país perder a dignidade de seu próprio “corpo” social para atender metaforicamente a necessidade de um segmento de poder que tem a gana perpétua de “ganhar mais dinheiro”. 

Qualquer semelhança com a apologia ao judicialismo realizada por um célebre proprietário de “hotel de programa” paulistano não é mera coincidência. A homenagem que Oscar Maroni prestou a Cármen Lúcia e Sérgio Moro, estampando as fotos dos magistrados na fachada de seu prostíbulo e oferecendo bebida ao público, retrata com singular precisão esse célebre fragmento de estrofe lavrado por Cazuza: o país inteiro – do alto da sua institucionalidade – foi transformado num “puteiro”.


Vapor Barato – Wally Salomão e Jards Macalé (1971) 


A canção Vapor Barato evoca sentimentos difusos de despedida e de uma América Latina conflagrada, seja por sua incompletude histórica impregnada do sentimento de desidentificação, seja pela narrativa clássica que toma de assalto seu gesto revolucionário de insurreição perpétua e agônica:


Sim, eu estou tão cansado,

Mas pra não dizer

Que eu não acredito mais em você


Com minhas calças vermelhas

Meu casaco de general

cheio de anéis.

(...)

Talvez eu volte um dia, eu volto, quem sabe

Mas eu preciso

Eu preciso esquecê-la 


O eu cancional instala uma dicção tomada pelo cansaço. No entanto, o cansaço não é suficiente para dotá-lo de descrença. Trata-se de uma sutileza semiótica que irá dominar todo o percurso tensivo da canção: um eu cancional acossado por um sentimento de paralisia, mas que deixa arestas para uma ação delicada e projetada nesse ‘outro’ que habita a canção e que encarna o feminino desejado por um protagonista masculino, como nas clássicas narrativas de amor. Há um quê de romantismo nesta canção. 

A indumentária tem função sígnica para este eu. Ela constitui uma cifra delicadamente revolucionária, oriunda de um escopo ingênuo e popular que busca no uniforme militar a propriedade tímica que pode acelerar a ação e dotar um sujeito de protagonismo político: o casaco de general evoca esses sentidos e “veste” esse eu cancional de uma persona que irá buscar utopicamente seu destino. A canção tem também um quê de utopia. 

Digno de nota é a tensividade que a canção deixa transparecer em sua dicção melancólica. Ela se apresenta como uma despedida: “talvez, eu volte um dia, eu volto quem sabe”. O eu cancional se despede, enfim, de sua “pequena” que significou tanto para ele durante uma vida pregressa que não nos é posta, senão pela memória do eu cancional. 

Impossível não pensar em Lula e em sua estranha despedida “interrompida” da cenografia política. Em alguns momentos, é possível imaginar, para esta canção, o eu cancional transpassado por um Lula imagético, bem como uma “pequena” desdobrada em ‘democracia’, abandonada por todo um povo e por esse eu político e desencarnado que adentra a incomunicabilidade de um prisão violenta e disruptiva.


Sangue Latino – João Ricardo e Paulo Roberto (1973) 


O grupo “Secos e Molhados” é um acontecimento na cena da música e do teatro mundiais, previsível e escandalosamente não catalogados como tal na historiografia da música pop. A canção “Sangue Latino” faz tremer essa percepção da grandiosidade do grupo, cuja densidade conceitual tampouco aceita o sentido de ‘avassaladora’: era mais do que isso.


Minha vida, meus mortos

Meus caminhos tortos

Meu sangue latino

Minh'alma cativa 


“Sangue Latino” é uma canção sem refrão, fragmentária, difusa, que instala uma busca justamente por um sentido narrativo que transpasse a vida biológica e simbólica do eu cancional, confuso, inseguro, mas, paradoxalmente investido de assertividade e posse da ação. 

Essa contradição seminal está no primeiro verso da canção: “jurei mentiras”. O eu cancional “jura mentiras” e, com isso, dota sua dicção narrativa de direções sígnicas: ele mente com precisão e fiança retórica. Esse eu utilizará a linguagem, portanto, em toda a sua complexidade e completude para alcançar seus desígnios: a ruptura com o rito e o logro diante de um mundo hostil e simbolicamente paralisante (“ventos do norte que não movem moinhos”). 

Esse eu cancional quer andar, quer navegar, quer viajar. Ele está investido de desejo pela própria narrativa e em busca da própria identidade. O “sangue latino” é sua insubmissão à normatividade ocidental que lhe impõe regras e leis para “ser”. Seus caminhos são “tortos” como o caminho ‘gauche’ de Drummond e sua alma é “cativa”, uma bifurcação semanticamente densa, já que “cativa” pode ser verbo ou qualidade desta alma que habita o eu cancional.

O português João Ricardo abusa do domínio da língua para perfazer, portanto, uma das peças mais delicadas e perfeitas do cancioneiro popular brasileiro.


Podres Poderes – Caetano Veloso (1984) 


Quem poderia imaginar uma dicção tão política e contundente de Caetano Veloso? Certamente, este escriba. Porque Caetano não cessou de ser genial nem por um minuto, fato somado a sua coragem de produzir enunciados político-poéticos de maneira vertiginosa e consequente. 

“Podres Poderes” traz, no entanto, a memória de um Caetano mais indignado do que as convencionalidades em torno de sua obra poderiam imaginar. A canção é tomada de sentimentos e percepções acerca do Brasil e da América Latina que, a despeito de pertenceram ao substrato mais “pop” da historiografia de tendência marxista, perfazem uma estrutura poética contundente e plena de sentido político:


Enquanto os homens exercem seus podres poderes

Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos

E perdem os verdes

Somos uns boçais


A estrofe inicial revela a percepção de um eu cancional que lamenta a própria identidade cidadã e adentra em um regime narrativo que, não raro, resvalará para o auto deboche irônico, tão afeito, talvez, à dicção de Machado de Assis. O eu identifica os vícios de seus semelhantes e a indiferença generalizada de uma sociedade que assiste o desenrolar dos “podres poderes” na paz celestial de seus prazeres mundanos, como o carnaval, e das pequenas ações corrompidas, como furar um sinal vermelho ou lamentar a burrice dos capatazes. 

O eu cancional coloca larga profusão cromática social na mesma paleta: índios, padres, bichas, negros e mulheres. Todos fazem o carnaval, enquanto os “homens” exercem os seus “podres poderes” (poderia ter acrescentado: “brancos e velhos”). Esse eu quer se juntar a essa voz indiferente, já que, aparentemente, só ele nota a podridão social, mas, ao se deparar com essa possibilidade, ele constata: “tudo é muito mal”. 

A canção dialoga demais com o tempo presente pós golpe. A autodepreciação “somos uns boçais” e “ser indecente” constitui essa verbalização vertiginosa de um eu em busca de alguma resposta filosófica para sua indomesticação: 


Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo

Daqueles que velam pela alegria do mundo

Indo mais fundo

Tins e bens e tais


O eu cancional, fatalmente desconectado de si mesmo, não vê saída, senão aderir à carnavalização do gesto: ele entende que é parte desta massa social que viola regras e avança de maneira errática rumo a um futuro absolutamente incerto e indecodificável. Só lhe resta “aproximar o seu cantar vagabundo” a esta massa e aprofundar todo o sentido que dela possa emanar, num movimento catártico e destituído do caráter prescritivo das instituições. 

Claro está que “Podres Poderes” traduz o Brasil de hoje com delicada precisão: poderes da república em estado de derretimento acelerado desfilam olimpicamente diante de uma população tão festiva quanto apática. O que fazer? Odiar a população? Odiar a tudo e a todos? Alimentar e retro alimentar os ceticismos mais vulgares e destituídos de significação? 

A solução do eu cancional de “Podres Poderes” é diferente. Ele adere, carnavalizado, a toda essa massa disforme de violações e indiferenças, e adentra a decomposição lúdica da linguagem como forma de sublimar a ausência de sentido que lhe acomete a alma e às timias, enunciando o gracejo fonológico “tins e bens e tais”.


A Voz do Morro – Ze Ketti (1965) 

Em “A Voz do Morro”, Zé Ketti perfaz um dos mais belos tecidos semióticos do cancioneiro brasileiro. Sua entrada triunfal da estrutura narrativa da canção é impactante e profundamente eficiente:


Eu sou o samba

A voz do morro sou eu mesmo sim senhor

Quero mostrar ao mundo que tenho valor

Eu sou o rei do terreiro 


O eu cancional transmuta-se em “samba”. Ele agrega e incorpora uma voz que não será sujeito, nem observador, nem instância cindida em busca de sua completude. Ketti instaura um regime narrativo muito complexo e conceitual: o próprio samba percorrerá o caminho simbólico em busca de algo mais profundo que sua própria onisciência rítmica: a felicidade do país.

Esse eu cancional transmutado em samba tem a consciência de que leva a “alegria” para “milhões de corações brasileiros”. Ele está investido de um sentido massivo, da indústria fonográfica, mas não só: ele aceita sua origem e a reforça, significando quase que de maneira simétrica a ideia de “morro”: o samba, que é o eu cancional, é também o “morro” e toda sua multiplicidade de sentidos urbanos que capilarizam esse samba no seio da sociedade, através do carnaval e da positividade natural que permeia os sentidos sociais de “samba”.

A canção é feita, curiosamente, de um refrão que se duplica e de uma segunda parte que, do ponto de vista estrutural, deveria ter sido a primeira - ou um fragmento de resolução intermediário. Tudo isso torna a canção de Zé Ketti mais complexa, mais densa e mais desafiadora, do ponto de vista da compreensão de sua notável força popular. 

Essa falsa segunda parte traz a resolução semântica da canção: o eu cancional e sua voz coletiva que, finalmente, adentra a primeira pessoa do plural (“queremos samba”), clamam por mais samba. O samba disponível, por assim dizer, não é suficiente para “alegrar o país”. 

Essa canção poderia ser facilmente re-contextualizada dentro das seguintes premissas: o samba é a democracia e o eu cancional é o povo. O povo, evidentemente, deveria-poderia querer-exigir mais democracia (e não menos) para que haja a possibilidade de felicidade social e existencial no “morro” que, por sua vez, poderia ser re-codificado conceitualmente como “sociedade”.


Deixa a Vida Me Levar – Zeca Pagodinho (2004) 


A canção de Zeca Pagodinho enseja, certamente, uma tese, mais complexa ainda do que “Vaca Profana”, de Caetano Veloso. Pagodinho dialoga com um dos princípios mais sofisticados das teorias da subjetividade: o sujeito assujeitado versus o sujeito não assujeitado. Resumindo a questão, seria o dilema de viver uma vida de posse de algum protagonismo intencional e dotado de desejo ou deixar a vida e sua complexidade espontânea e substancialmente social tomarem conta do espírito. 

O eu cancional pede licença a algum tipo de entidade não identificada que poderia ser Deus ou o próprio co-enunciador da canção que tomaria, por sua vez, a onisciência interna do universo criado pelo compositor. O eu cancional pede: 


Deixa a vida me levar

(Vida leva eu)

Deixa a vida me levar

(Vida leva eu)

Deixa a vida me levar

(Vida leva eu)


Sou feliz e agradeço

Por tudo que Deus me deu 


Esse “deixa” é remetido a alguma função subjetiva externa ou pode apenas ser um verbo performativo que introduz o desejo do eu cancional, desejo, a rigor, que representaria a ideia de que uma vida dotada também de desejo pudesse conduzi-lo a algum tipo de desenlace gratificante e dotado de sentido. 

A estrutura do refrão é muito bem resolvida: o coro repete de maneira irresistível a ideia de que a vida deve conduzir o eu cancional (“vida leva eu”), enunciado complementar carregado de coloquialidade e ritmo. 

Por fim, o eu cancional manifesta gratidão por sua condição presente: ele não está desconectado de si, como a maioria dos eus cancionais que buscam completude ou conjunção passional. Esse eu busca apenas o reconhecimento social de que sua vida é plena de sentido e a celebração desse reconhecimento, em um desdobramento complexo e infinito de percepções de si, da vida e do mundo. 

Uma chave interpretativa importante para a significação desta canção são as primeiras e segundas partes em que o eu cancional se apresenta como um cidadão pobre, de gostos e prazeres simples e com forte sentimento de pertença social: 


Se a coisa não sai

Do jeito que eu quero

Também não me desespero

O negócio é deixar rolar


E aos trancos e barrancos

Lá vou eu!

E sou feliz e agradeço

Por tudo que Deus me deu 

O eu cancional avisa: se algo lhe frustra, isso é irrelevante para a busca de sua verdade. A fé que ele professa no imponderável é incondicional. É uma fé, por assim dizer, caracterizada pela certeza de que o destino, a vida, Deus, ou qualquer outra entidade ou palavra que atenda para as funções de padroeira do futuro deste eu, irá tomar a “decisão” correta em levá-lo para o lado que for. 

Pagodinho dialoga também diretamente com a crença católica que acomete os mais humildes. A tônica, por exemplo, de um nordeste marcado pela seca e pela pobreza extrema, permitiu que a sociologia produzisse uma leitura já consagrada do sentido religioso e filosófico daquele povo: a população ali instalada tem um sentimento de resignação diante do destino bastante previsível de pobreza e dificuldades. O que resta a um povo esquecido e abandonado pelo poder público é apenas e tão somente a fé (ou a insurreição). 

Explica-se a identificação de Lula com essa canção. É a percepção do respeito pelas crenças populares e pela gratidão manifesta que o povo mais humilde realoca com muita insistência nos gestos de professar a própria fé, com orgulho e dignidade.


Sujeito de Sorte – Belchior (1976) 


Em “Sujeito de Sorte”, Belchior faz um jogo poético-temporal interessante, sutil e consagrado apenas aos grandes e virtuosos poetas. Há dois eus cancionais na canção: um que habita o passado e outro que habita o presente. Ambos, no entanto, são a mesma persona, o que exige uma injunção gramatical suspeita e perturba o co-enunciador ouvinte bem comportado da canção.

A canção é muito curta e pode ser apresentada na íntegra:


Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte

Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte

E tenho comigo pensado deus é brasileiro e anda do meu lado

E assim já não posso sofrer no ano passado


Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro

Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro 


O eu cancional fragmentário se utiliza inicialmente de um recurso igualmente inusual: ele adverbializa um substantivo. “Presentemente” é consagrado pelo uso, mas não é comum, o que faz toda a diferença, sobretudo em uma canção que lida com as coloquialidades de maneira ampla. 

Esse uso é deliberado. O eu cancional quer instalar um sentido forte de temporalidade associado às solenidades (que estilhaçar-se-á em seguida) das assembleias. O eu cancional quer se afirmar diante do público, não de um co-enunciador genérico e passivo. 

Habita juntamente com esse eu “do presente”, um outro eu, cético e contrastivo. A letra diz “e assim já não posso sofrer no ano passado”, como se o passado perdurasse no tempo e ainda persistisse enquanto realidade sensível. 

A chave para o desenlace dessa questão é o refrão, curto e circular: “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. As temporalidades para esse eu cancional são simultâneas e concorrem entre si, com leve prevalência para o presente, uma vez que esse tempo conceitual da ação sofreu um deslocamento gramatical na abertura da canção: o “presentemente”. 

Belchior cria dois mundos paralelos que disputam a primazia do bem estar e da completude subjetiva. Um eu do passado, que sofre e morre versus um eu do presente que vive e é forte. 

A escolha de Belchior por Lula é precisa. Embora, ele nunca tenha hesitado diante dos desafios políticos, há um eu pregresso de Lula, materializado em forma de simulacro pela imprensa, que sofre e que morre. Tão vivo esse eu imaginário, que noticias sobre seu estado depressivo e sobre sua incapacidade de suportar a prisão já correm pela imprensa brasileira tradicional, internacionalmente célebre em sua capacidade de fantasiar. 

O “sujeito de sorte” que é Lula e do qual ele “presentemente” faz questão de renovar os votos e a cenografia, é o sujeito que tende a superar toda essa perseguição de maneira serena, sólida e digna. É como se Lula, através de Belchior, estivesse dizendo para a população brasileira que o ama: “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.







Postado em Brasil247 em 22/04/2018

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