Os escândalos que assombram a canonização de João Paulo II
Eduardo Febbro
João Paulo II, o papa que, entre outros horrores, promoveu e encobriu pedófilos e violadores da Igreja, recebeu, ao mesmo tempo em que João XXIII, a canonização.
Para além do espetáculo obsceno montado para esta ocasião, dos milhares de fieis na Praça de São Pedro, dos três satélites suplementares para transmitir o ato, para além da fé de muita gente, a canonização do papa polonês é uma aberração e um ultraje para qualquer cristão do planeta.
Declarar santo a Karol Wojtyla é se esquecer do escandaloso catálogo de pecados terrestres que pesam sobre este papa: amparo dos pedófilos, pactos e acordos com ditaduras assassinas, corrupção, suicídios jamais esclarecidos, associações com a máfia, montagem de um sistema bancário paralelo para financiar as obsessões políticas de João Paulo II – a luta contra o comunismo -, perseguição implacável das correntes progressistas da Igreja, em especial a da América Latina, ou seja, a frondosa e renovadora Teologia da Libertação.
Mas o mundo sucumbiu ao grito de “santo súbito” que reclamava a canonização de um homem que presidiu os destinos da Igreja em seu momento mais infame e corrupto. O papa “viajante”, o papa “amável”, o papa “dos jovens”, era um impostor ortodoxo que deixou desprotegidas as vítimas dos abusos sexuais e os próprios pastores da Igreja quando estes estiveram com suas vidas ameaçadas.
Sua visão e suas necessidades estratégicas sempre se opuseram às humanas. Na trama desta história também há muito sangue, e não só de banqueiros mafiosos como Roberto Calvi ou Michele Sindona, com quem João Paulo II se associou para alimentar com fundos secretos os cofres do IOR (Banco do Vaticano), fundos que serviram para financiar a luta contra o comunismo no leste europeu e contra a Teologia da Libertação na América Latina.
João Paulo II deixou desprotegidos os padres que encarnavam, na América Latina, a opção pelos pobres frente às ditaduras criminosas e seus aliados das burguesias nacionais.
Em 2011, cinquenta destacados teólogos da Alemanha assinaram uma carta contra a beatificação de João Paulo II por não ter apoiado o arcebispo salvadorenho Óscar Arnulfo Romero, assassinado em 24 de março de 1980 por um comando paramilitar da extrema-direita salvadorenha, enquanto celebrava uma missa.
Romero sim que é e será um santo. O arcebispo enfrentou os militares para pedir-lhes que não assassinassem seu povo, percorreu bairros, zonas castigadas pela repressão e pela violência, defendeu os direitos humanos e os pobres. Em resumo, não esperou que Bergoglio chegasse a Roma para falar de “uma Igreja pobre para os pobres”. Não. Ele a encarnou em sua figura e pagou com sua vida, como tantos outros padres aos quais o Vaticano taxava de marxistas ou comunistas só porque se envolviam em causas sociais.
João Paulo II é um santo impostor que traiu a América Latina e aqueles que, a partir de uma igreja modesta, ousaram dizer não aos assassinos de seus povos.
Se, no leste europeu, João Paulo II contribuiu para a queda do bloco comunista, na América Latina favoreceu a queda da democracia e a permanência nefasta de ditaduras e sua ideologia apocalíptica.
Um detalhe atroz se soma à já incontável dívida que o Vaticano tem com a justiça e a verdade: o expediente de beatificação de Óscar Romero segue bloqueado nos meandros políticos da Santa Sé. João Paulo II beatificou Josemaría Escrivá, o polêmico fundador da Opus Dei e um de seus protegidos. Mas deixou Romero de fora, inclusive quando estava com sua vida ameaçada. “Cada vez mais sou um pastor de um país de cadáveres”, costumava dizer Romero.
João Paulo II foi eleito em 1978. No ano seguinte, Monsenhor Romero entregou a ele um informe sobre a espantosa violação dos Direitos Humanos em El Salvador. O papa ignorou o informe e recomendou a Romero que trabalhasse “mais estreitamente com o governo”. Como lembrou à Carta Maior Giacomo Galeazzi, vaticanista de La Stampa e autor de uma magistral investigação, “Wojtyla Secreto”, em “seus 25 anos de pontificado nenhum bispo latinoamericanao ligado à ação social ou à Teologia da Libertação foi nomeado cardeal por João Paulo II”.
A resposta está em uma frase de outro dos mais dignos representantes da “Igreja dos Pobres”, o falecido arcebispo brasileiro Hélder Câmara. “Quando alimentei os pobres me chamaram de santo; mas quando perguntei por que há gente pobre me chamaram de comunista”.
O show universal da canonização já foi lançado. A imprensa branca da Europa tem a memória muito curta e sua cultura do outro é estreita como um corredor de hospital. Todos celebram o grande papa. Ela promoveu à categoria de santo um homem que tem as mãos sujas, que cometeu a infâmia de encobrir violadores de crianças, de beijar ditadores e legitimar com isso o rastro de mortos que deixavam pelo caminho, de negociar benefícios para a máfia, que sacrificou em nome dos interesses de uma parte da Europa a misericórdia e a justiça de outros, entre eles os da América Latina. Estão canonizando um trapaceiro. O cúmulo da esperteza, do erro imemorial.
Em que altar se ajoelharão as vítimas dos abusadores sexuais e das ditaduras?
Podemos levantar todos juntos um lugar aprazível e justo na memória com as imagens do Padre Múgica ou do Monsenhor Romero para nos reencontrarmos com a beatitude no sentido de quem, por um ideal de justiça e igualdade, enfrentou a morte sem pensar nunca em si mesmo, ou em baixas vantagens humanas.
Você pode ler o artigo completo postado no site Carta Maior em 26/004/2014