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Tempo e trabalho



Por Alcir Martins *

Em 1847, na Inglaterra, uma lei passou a limitar a jornada de trabalho em dez horas diárias. Sim, dez horas diárias! Se a este quadro somarmos que não havia descanso semanal remunerado, nem férias anuais, nem garantias previdenciárias ou regulação salarial, formamos um cenário dramático que parece ficcional aos olhos do século XXI. Apesar de ainda convivermos com várias modalidades de trabalho precarizado, ao menos nos textos legais se reconhece a existência de direitos às trabalhadoras e trabalhadores.

No início dos anos 2000, na França, a Lei Robien estabeleceu jornadas de trabalho de 35 horas semanais, com políticas transitórias e incentivos para garantir a manutenção dos salários num período de adaptação e confirmação da nova realidade laboral. Os mais de 150 anos que separam uma legislação da outra viram acontecer alterações substanciais no nosso modo de produção e nas relações de trabalho. Absorvê-las para dentro do mundo do trabalho, a partir de uma perspectiva da classe trabalhadora é fundamental.

No Brasil, em 2003, o Decreto Presidencial 4.836 avançou na discussão sobre a jornada diária, possibilitando que o serviço público organize turnos contínuos de trabalho, para atender por mais tempo e com mais qualidade ao público. Embora a iniciativa privada e o setor público tenham lógicas diferentes, é importante conectar ambas as lutas por jornadas mais humanizadas, pois no fundo são uma luta só. Ambas colocam frente a frente o tempo de vida e o tempo do lucro, seja esse lucro medido pela mais-valia que vai para o cofre particular do patrão ou apropriada pelo Estado, que a redistribui mais ou menos justamente para a sociedade.

Os avanços tecnológicos fizeram o tempo de trabalho necessário recuar e a reorganização das jornadas de trabalho, comprovadamente, eleva a produtividade por hora trabalhada. As rotinas de trabalho de anos atrás estão imensamente mais ágeis. Imaginem o tempo que se gastava para elaborar, redigir e entregar um documento simples há 10 ou 20 anos atrás? Utilizava-se a máquina de escrever e não o computador. A informação só podia circular em dimensões físicas e hoje, virtualizada na Internet, cruza e contorna o mundo todo em instantes. As linhas de produção dos mais diversos setores tiveram avanços enormes em termos tecnológicos. Há um acréscimo inegável da produtividade e que pode ser amplificada pela jornada de trabalho reduzida.

Estudos franceses sobre os impactos da Lei Robien, comprovaram a geração de mais postos de trabalho e, em especial, o incremento da produtividade por hora trabalhada. Além disso, notou-se uma queda sensível nos índices de adoecimento por questões laborais e afastamentos do trabalho para tratar da saúde.

Esse conjunto de fatores garantiu que a mais-valia não fosse alterada negativamente, mantendo os lucros dos empregadores. Ou seja, não se trata de uma revolução (ainda!) mas apenas de redistribuir entre todos, os frutos do desenvolvimento tecnológico que deve pertencer a toda a humanidade. As mediações propostas na experiência francesa de limitação de jornada, por exemplo, buscavam ampliar o nível de emprego, apoiando-se em duas razões diretamente proporcionais: aproveitamento da tecnologia e potencialização da produtividade por hora trabalhada.

Em síntese, o que está dito acima, embora aponte para concepções teóricas e práticas bastante avançadas para o momento em que vivemos, está longe de se colocar como elemento subversivo ou revolucionário. No nosso tempo ainda horroriza ver o exército de mão-de-obra de reserva; batalhões de desempregados ao lado de potencial abundância negligenciada e é para combater esta mazela que a redução da jornada de trabalho pode ser discutida primeiramente pela sociedade.

Cada vez mais o conhecimento humano possibilita que se produza mais com menor utilização de trabalho vivo. No entanto, a jornada de trabalho é, entre outras coisas, um mecanismo de controle dos trabalhadores. Não foram poucos os exemplos em que setores da economia, dos serviços a plantas industriais, conseguiram manter níveis de produção apesar da diminuição da presença humana – seja por rearranjos, desemprego ou greves. Talvez sem querer, o capitalismo demonstrou a possibilidade que a humanidade desfruta hoje de ampliar os excedentes de tempo livre do trabalho e, aos poucos, ir se liberando do trabalho.

Esta possibilidade fundamental é o objeto de uma importante disputa: se, por um lado, os capitalistas tendem a transformá-la em diminuição do emprego, jogando cada vez mais gente ao desemprego ou impedindo o acesso a postos de trabalho; de outra parte, pela perspectiva da classe trabalhadora, a potenciação tecnológica aplicada ao mundo do trabalho deve ser revertida em mais tempo livre, através da redução das jornadas de trabalho e de ampliação da força de trabalho, com mais gente trabalhando.

Lembrando que, desta forma, ainda seguiriam praticamente intactas as relações de produção e somente quando nos for possível questionar a obrigação de trabalhar pra viver estaremos avançando para uma demanda revolucionária, que altere, de fato, o estado das coisas para que todos tenham vida em abundância.

* técnico em assuntos educacionais na UFSM e coordenador de Comunicação Sindical da ASSUFSM

Postado no blog Sul 21 em 23/11/2012


Exploração e a Apple


Foxconn


POR TRÁS DO DESIGN ARROJADO E HIPERMODERNO DOS PRODUTOS DA MAÇÃ, HÁ INDÍCIOS SÉRIOS DE HAVER UMA CADEIA DE PRODUÇÃO QUE HUMILHA E EXPLORA OS EMPREGADOS, POR PARTE DA FOXCONN

Rafael Alcadipani
A Apple é uma das principais marcas do mundo contemporâneo. Seus Ipods, Ipads e demais máquinas são o objeto de desejo de milhões de pessoas ao redor do mundo. Os produtos da Apple são produzidos pela Foxconn, que possui uma fábrica na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo. O Jornal de Jundiaí denunciou no último domingo que os funcionários estão enfrentando problemas sérios dentro da fábrica. Segundo as informações publicadas, a comida da empresa é muito ruim, havendo casos em que larvas foram encontradas na alimentação. Os funcionários têm restrições quanto ao uso do banheiro no horário de trabalho e o estilo de supervisão é altamente agressivo. A Foxconn também produz para empresas como HP, Sony e Dell.
Não é a primeira vez que a Foxconn se vê às voltas com problemas trabalhistas. Em maio de 2010, a BBC denunciou que empregados da empresa na China teriam cometido suicídio e foram encontrados funcionários mortos devido a ataque cardíacos dentro dos alojamentos da empresa. Mais de 30 empregados teriam tentado se jogar do alto do edifício da empresa. Tais mortes teriam potencialmente sido catalisadas devido às condições de trabalho na China. Organizações Não Governamentais que monitoram as condições de trabalho naquele país alegaram que a fábrica da Foxconn era gerida com um estilo gerencial militar e que as condições de trabalho eram muito duras.
Posteriormente, um jornalista da agência internacional de notícias Reuters foi agredido por um segurança após tentar tirar fotos da fábrica taiwanesa que, de fora, mais parece uma fortaleza militar. Um órgão de imprensa chinês conseguiu infiltrar um repórter no local para verificar as suspeitas condições de trabalho. Revelou-se que a empresa pagava um salário muito baixo para seus empregados ao mesmo tempo em que implicitamente os forçava a fazer horas-extras além dos limites legais. Revelou, ainda, que o stress tanto mental quanto físico era extremo. Era proibido conversar na linha de produção, os funcionários podiam ir ao banheiro apenas 10 minutos a cada duas horas e todos passavam por revistas rigorosas ao entrar e sair da fábrica.
Novas auditorias realizadas na fábrica da Foxconn neste ano revelaram que funcionários continuam sofrendo com um estilo de supervisão altamente agressivo, que os alojamentos dos funcionários têm péssimas condições e que muitos operários não recebem pelas horas extras que fazem. Além disso, foi constatado que as condições de segurança no trabalho são altamente precárias. A reportagem do Jornal de Jundiaí mostra que a Foxconn trouxe para o Brasil o mesmo estilo de gestão que pratica na China. Por trás do design arrojado e hipermoderno dos produtos Apple há indícios sérios de haver uma cadeia de produção que humilha e explora a exaustão dos empregados. Há um custo humano considerável que não poderia existir.
Rafael Alcadipani é professor adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
Postado no blog Brasil 247 em 24/07/2012
Imagem inserida por mim

" Trabalho infantil "






Você está entrando no DIÁRIO GAUCHE um blog com vista para o mar incerto do século 21






Foto-legendaSagira Ansari, de 11 anos (à direita), enrola cigarros de tabaco com a sua família, em casa, no estado indiano de Bengala Ocidental, em 26 de janeiro último.

Sagira é uma entre milhões de crianças trabalhadoras nos recantos mais escondidos da Índia profunda. Muitas crianças trabalham em indústrias perigosas mas cruciais para a economia indiana: nas olarias que abastecem a indústria da construção civil, nos campos encharcados de pesticidas que produzem os alimentos da Índia, um país com 800 milhões de almas, ou fazendo cigarros com as mãos e respirando o pó do tabaco de forma permanente.

Sagira e sua família ganham cerca de 1,5 dólar para cada um mil cigarros enrolados, o que representa algo como 150 dólares/mês, de trabalho de toda a família, inclusive as crianças.  Rafiq Maqbool/AP


Empresas requintadas com sistemas medievais de exploração




Escravos da modernidade
Na semana passada, a imprensa veiculou a notícia de que uma construtora servia-se de trabalho escravo.

A obra não era uma hidrelétrica na região Norte ou em algum lugar de difícil acesso, onde sempre é mais complicado descobrir o que se passa. Na verdade, a obra encontrava-se quase na esquina com a avenida Paulista.

Trata-se da reforma de um dos mais conhecidos hospitais da capital paulista, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Ironicamente, a empresa responsável pela obra chama-se "Racional" Engenharia.

Como não podia deixar de ser, a empresa afirmou que os trabalhadores respondiam a uma empresa terceirizada e que os dirigentes desconheciam realidade tão irracional. Este foi o mesmo argumento que a rede espanhola de roupas Zara utilizou quando foi flagrada servindo-se de mão de obra escrava boliviana empregada em oficinas terceirizadas no Bom Retiro.

É muito interessante como empresas que gastam fortunas em publicidade e propaganda institucional são tão pouco cuidadosas no que diz respeito às condições aviltantes de trabalho das quais se beneficiam por meio do truque tosco da terceirização. Quando se contrata uma empresa terceirizada, não é, de fato, complicado averiguar as reais condições a que trabalhadores estão submetidos, se seus turnos são respeitados e se seus alojamentos são decentes.

Há de se perguntar se tal desenvoltura não é resultado da crença de que ninguém nunca perceberá o curto-circuito entre imagens institucionais modernas, requintadas, "racionais", e sistemas medievais de exploração.

No fundo, essa parece ser mais uma faceta de um velho automatismo brasileiro de repetição: discursos cada vez mais elaborados e modernos, práticas cada vez mais arcaicas. Afinal, tal precariedade foi feita em nome de novas práticas trabalhistas, mais flexíveis e adaptadas aos tempos redentores que, enfim, chegaram.

Não mais a rigidez do emprego e do controle dos sindicatos, mas a leveza do paraíso da terceirização, onde todos serão, em um horizonte próximo, empresas. Cada trabalhador, um empresário de si mesmo.

Que essa flexibilidade tenha aberto as portas para uma vulnerabilidade que remete trabalhadores à pura e simples escravidão, isto não retiraria em nada o brilho da ideia. Pois apenas os que temem o risco e a inovação poderiam querer ainda as velhas práticas trabalhistas. Pena que o novo tenha uma cara tão velha.

Pena também que, como os gregos mostrem a cada dia, quem paga o verdadeiro preço do risco sejam, como dizia o velho Marx, os que já perderam tudo.

Artigo do professor Vladimir Safatle, da Filosofia da USP. Publicado na Folha, no último dia 14/2.

Postado no Blog Diário Gauche em 23/02/2012

Ótima análise sobre Trabalho Capital e " Tempos Modernos "





"Tempos Modernos": trabalho alienado na Revolução Industrial


A primeira exibição de Modern Times (Tempos Modernos), filme de Charles Chaplin em que o seu famoso personagem — “The Tramp” ou “Carlitos” (no Brasil) — tenta sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado, ocorreu em 5 de fevereiro de 1936, no Rivoli Theater de Nova Iorque. 

O Sul21 reproduz abaixo um artigo do Prof. Sérgio Prieb, do Departamento de Ciências Econômicas e pesquisador do Núcleo de Estudos Econômicos (NEEC) do curso de Ciências Econômicas da UFSM.

Após o artigo, antes das Referências bibliográficas, trazemos o link do YouTube com a exibição completa do filme.


Por Sérgio A. M. Prieb

“Não sois máquinas! Homens é que sois!”

(Discurso de Charles Chaplin no final do filme “O grande ditador”)

A origem da palavra trabalho tem sido comumente atribuída ao latim tripalium, instrumento de tortura utilizado para empalar prisioneiros de guerra e escravos fugidios. 

Assim, em sua própria terminologia, o trabalho carrega uma carga de esforço e desprazer, o que é extremamente compreensível em sociedades onde predominavam o trabalho forçado e que atividades produtivas eram desprezadas e executadas tão somente por escravos como na Grécia e Roma antigas, cabendo aos homens livres a execução de atividades intelectuais ligadas às ciências e às artes.

Pode-se afirmar que o trabalho é o ato que o homem executa visando transformar conscientemente a natureza, ou para citar Marx (1983, p. 149), é uma ação em que o homem media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. 

A origem do trabalho encontra-se na necessidade de a humanidade satisfazer suas necessidades básicas, evoluindo para outros tipos de necessidades, mesmo supérfluas. 

Assim, trabalhar é produzir riqueza, o que é necessário em todos os modos de produção, seja no comunal primitivo, no escravista, no feudal, no capitalista, e mesmo nas experiências socialistas. O que muda é a forma de produzir, a tecnologia utilizada, e a relação entre o sujeito que produziu e o que se apropria do que foi produzido, que varia de acordo com a forma de organização da sociedade*(1).

A sociedade não vive sem o trabalho, na verdade, pode-se dizer que o homem evoluiu de sua condição animal até sua condição atual devido ao seu trabalho*(2).

Engels (s/d, p. 270) afirma que o homem modifica sua relação com a natureza devido ao trabalho. Se na condição animal ele tinha de submeter-se às leis da natureza, através do trabalho ele busca dominar a natureza, transforma-a em proveito próprio. Passa de ser dominado a ser dominante devido ao desenvolvimento do trabalho.

O próprio desenvolvimento do seu corpo, do cérebro, da fala, e da relação entre os homens origina-se do trabalho. 

Desta forma, Engels afirma que o trabalho criou o homem e o homem criou o trabalho, sendo esta uma ação exclusivamente humana, pois assume uma forma consciente, não intuitiva, pois antes de produzir um objeto é necessário ao trabalhador elaborá-lo inicialmente em seu cérebro para só então partir para a execução. Já as atividades que os animais executam (a aranha e sua teia, o joão-de-barro e sua casa) são meramente intuitivas, daí trabalho ser uma atividade exclusiva da espécie humana.

Para Marx, o único bem que o trabalhador possui devido a não ser proprietário de meios de produção é a sua força de trabalho, a sua capacidade de trabalhar, sendo por isso que o trabalhador é obrigado a vender sua força de trabalho ao capital.

Ao contrário de sociedades pré-capitalistas como o feudalismo e a escravidão, no capitalismo o trabalhador entrega sua capacidade de trabalhar por um tempo determinado através de um contrato de trabalho.

Além do estabelecimento de um contrato de assalariamento que regula as relações capital-trabalho, algumas diferenças podem ser encontradas no trabalho sob o modo de produção capitalista em comparação com sociedades pré-capitalistas.

Como já visto, o trabalho era desprezado na Grécia e Roma antigas, fazendo com que a socialização dos indivíduos ocorresse fora do trabalho, enquanto na sociedade capitalista a socialização dos indivíduos ocorre exatamente nas relações de trabalho. 

Para esta mudança, a revolução industrial dos séculos XVIII e XIX teve um peso determinante*(3), com a formação de exércitos de trabalhadores que desprovidos de qualquer propriedade são obrigados a abandonar a vida do campo, sendo jogados nas cidades em busca de empregos assalariados junto às nascentes indústrias.

O trabalho então assumiria um novo caráter, de atividade indigna no passado, passam a ser vistos como indignos aqueles que não trabalham, taxados como vagabundos os que não se submetem a trabalhar para o capital*(4), mesmo que o próprio capital não tenha interesse em absorver todo o trabalho posto à sua disposição.

Assim, os capitalistas sempre encontram um grupo de trabalhadores à margem do processo produtivo, mas sempre ávidos por incorporar-se a ele, a estes trabalhadores Marx denominou de “exército industrial de reserva”.

Em “Tempos modernos” (“Modern times”), filme de Charles Chaplin*(5) de 1936, o diretor mostra com maestria os efeitos que o desenvolvimento capitalista e seu processo de industrialização trouxeram à classe trabalhadora. 

Como diz o texto de introdução do filme, “’Tempos modernos’ é uma história sobre a indústria, a iniciativa privada e a humanidade em busca da felicidade”*(6).

A temática de “Tempos modernos” custou a Chaplin uma série de perseguições por parte da CIA, juntamente com a acusação de simpatias comunistas*(7)

Além disso, havia recusado naturalizar-se norte-americano argumentando ser um “cidadão do mundo” o que agrava ainda mais sua situação. Chaplin passa a constar na “lista negra” de Hollywood durante a perseguição macarthista, o que torna sua situação de trabalho nos EUA insustentável (seus filmes eram proibidos), levando-o a abandonar definitivamente os EUA em 1952.

No filme, o vagabundo Carlitos, ironicamente, encontra-se na condição de operário. É o auge do predomínio do padrão de acumulação taylorista-fordista, em que os trabalhadores tem suas habilidades substituídas por um trabalho rotineiro e alienado.

É o predomínio da esteira rolante de Ford, do cronômetro de Taylor*(8), do operário-massa.

A inadequação de Carlitos com o trabalho alienado perpassa o tempo todo do filme. 

Na condição de operário ele tenta se adaptar, se esforça para inserir-se naquele novo mundo de produção em massa, máquinas gigantescas, exploração do trabalho, mas também de greves e de organização sindical. 

Esta inadequação fica presente logo no início do filme, quando um bando de ovelhas brancas é mostrado e apenas uma delas tem a cor preta, certamente esta representa o próprio Carlitos. A cena do bando de ovelhas é misturada com a cena dos operários entrando na fábrica, como se fossem animais indo para o abate, só que, na verdade, vão para a produção na fábrica.

Como operário da fábrica, Carlitos se depara com a esteira de produção fordista que aumenta o ritmo de produção a todo instante, tornando a relação homem-máquina extremamente conflituosa, até o ponto em que o próprio Carlitos é engolido pela máquina, saindo de lá em uma condição de insanidade, momento em que ele abandona a condição de quase um autômato (repetindo um gesto mecânico mesmo quando não está trabalhando, fruto da alienação do trabalho) para uma situação de confronto direto em que ele sabota a produção, insurge-se contra o patrão e é internado como louco.

A contradição capital-trabalho está presente de forma clara no filme. O patrão fica numa sala armando quebra-cabeças e lendo jornal, ao mesmo tempo em que de um monitor controla todos os movimentos dos operários e dita o ritmo de produção a ser executado*(9).

Em outras passagens, a inadequação de Carlitos com o trabalho alienado fica presente nas tantas tentativas de trabalhar que o personagem enfrenta. 

Quando arranja trabalho no caís após sair do hospício, consegue em um simples gesto lançar um navio ao mar. Quando o personagem vira vigia na loja de departamentos, além, de não conseguir impedir um assalto, consome produtos da loja, leva a amiga para o interior da loja, e dorme no serviço. Trabalhando como auxiliar de mecânico, Carlitos demonstra a todo instante sua inadequação com a simples tarefa de ajudar o mecânico chefe, fazendo com que este seja também engolido pela máquina. Quando assume o papel de garçom, também é nítida a sua incapacidade de servir uma mesa.

Na verdade, Carlitos só consegue mostrar sua identificação com atividades nada alienantes e que fogem ao domínio da máquina sobre o trabalho. 

Quando ele está na loja de departamentos e mostra uma grande habilidade em patinar, e quando está no restaurante trabalhando como garçom e que improvisa um número musical cômico. 

Neste momento percebe-se que em ao menos em uma atividade ele é bom, em um tipo de trabalho que requeira criatividade e não uma mera execução de tarefas formulada por terceiros. Só então, ele é aplaudido por todos e inclusive, parabenizado pelo patrão*(10).

A voz de Carlitos é ouvida pela primeira vez no cinema quando ele canta. Chaplin opunha-se ao cinema falado, achando que este não duraria muito tempo. 

Na verdade, seu temor era com seu próprio personagem, adequado muito mais ao gestual do que a fala. Somente depois de 10 anos de existência, é que em “Tempos modernos”, Chaplin faria sua primeira experiência com o cinema falado, ou no seu caso, “semi-falado”. 

Ouve-se o ruído das máquinas, o som mecânico da “máquina de comer”, do alto-falante em que o patrão dirige-se aos funcionários, mas em nenhum momento um personagem fala, que não seja através de uma máquina*(11).

Mesmo quando Carlitos canta ele expressa uma crítica ao cinema falado, quando esquece a letra, sua amiga*(12) grita a ele: “Cante! Dane-se a letra!”, e é o que ele faz, mostra que mesmo sem palavras, ou no caso, usando palavras sem sentido, mas caprichando no gestual, faz com que todos consigam compreender uma história*(13).

Outro aspecto que chama atenção no filme é o predomínio completo do trabalho abstrato sobre o trabalho concreto*(14), ou seja, ao capital não interessa a forma como está sendo produzido ou o que está sendo produzido, somente importa é que está sendo criado valor. 

Daí não sabermos exatamente qual a mercadoria que Carlitos produz, e certamente, nem mesmo os operários da fábrica o sabem. Assim, não existe qualquer identificação do trabalhador com seu trabalho, nem com a mercadoria produzida por ele.

Mesmo com toda a crítica social que é feita, a reação do personagem Carlitos ao sistema é feita de maneira individual e não coletiva. 

Quando eclode a Grande Depressão de 1929, que coincide com a saída do personagem do hospício, é levado à prisão acusado de ser líder comunista por empunhar uma bandeira (pretensamente vermelha) em frente a um grupo de trabalhadores que fazia uma passeata na rua. 

Carlitos é visto como o cidadão comum, não politizado, mas que pelo simples gesto de buscar devolver a bandeira que tinha caído do caminhão é acusado de líder da revolta operária. Em outro momento, quando eclode uma greve na fábrica em que trabalha, também por acidente é acusado de agressão a um policial que viria reprimir a greve.

No final do filme, quando sua amiga indignada com a situação de perseguição, miséria e desemprego pergunta: “para que tudo isso?” ele responde: “levante a cabeça, nunca abandone a luta”. No entanto, a reação dos dois não é o enfrentamento contra o capital, é retirar-se da cidade, indo em direção ao campo*(15).

Ao som da belíssima “Smile”, de autoria de Chaplin, Carlitos dá as costas para a produção em massa, para as gigantescas máquinas que desempregam trabalhadores, para as suntuosas lojas com suas escadas rolantes, para o trabalho alienado.

Seria o último filme mudo de Chaplin e também a despedida do personagem Carlitos, que havia se tornado obsoleto em um momento em que o cinema falado tomava conta dos cinemas do mundo todo. Era o sinal dos tempos. Os tais “tempos modernos”.


Referências bibliográficas

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista – a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

CHAUÍ, Marilena. Introdução. In: LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec, 1999.

CLARET, Martin. Chaplin por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2004.

ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. In: MARX, Karl. e ENGELS. Friedrich. Obras escolhidas, volume 2. São Paulo: Editora Alfa-Omega, s/d.

GOMES, Morgana. A vida e os pensamentos de Charles Chaplin. Rio de Janeiro: 4D Editora, s/d.

LEPROHON, Pierre. Charles Chaplin – o seu destino e a sua obra. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.

MARX, Karl. O capital – crítica da economia política – Vol. I, Tomo I. São Paulo: Abril Culural, 1983.

PRIEB, Sérgio. O trabalho à beira do abismo – uma crítica marxista à tese do fim da centralidade do trabalho. Ijuí: Editora Unijuí, 2005.

VÁSQUEZ, Adolfo. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão popular/CLACSO Livros, 2007.

*Professor Adjunto do Departamento de Ciências Econômicas da UFSM. Doutor em Economia Social e do Trabalho pela Unicamp. Membro do Comitê Central do PCB.

1. “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (Marx, 1983, p. 50).

2. Sobre o papel central do trabalho na sociedade capitalista contemporânea, bem como uma crítica aos autores que acreditam ter o trabalho perdido seu sentido na sociedade moderna, ver Prieb (2005).

3. Vásquez (2007, p. 47) afirma que mesmo que tenha ocorrido a partir da revolução industrial uma valorização maior do trabalho e da técnica, não chega a despertar uma valorização do trabalhador e da significação de sua atividade produtiva.

4. “Nesse imaginário, ‘a preguiça é a mãe de todos os vícios’ e nele vêm inscrever-se hoje, o nordestino preguiçoso, a criança de rua vadia (vadiagem, aliás, o termo empregado para referir-se às prostitutas), o mendigo – ‘jovem, forte, saudável, que devia estar trabalhando em vez de vadiar’” (Chauí, 1999, p. 10).

5. Charles Spencer Chaplin nasceu em 1889 em Londres, Inglaterra, e morreu em 1977 em Vevey, na Suiça.

6. “O filme custou US$1.500.000 de dólares (somente para fazer a grande máquina que engole Chaplin e Chester Conklin foram gastos 500 mil), mas nos Estados Unidos rendeu apenas US$1.800.000. enquanto a Itália e a Alemanha proibiram sua exibição, em Londres, Paris e Moscou, ele alcançou um sucesso considerável durante o resto do ano” (Gomes (s/d, p. 67).,

7. Chaplin no início dos anos 30 percorre o mundo divulgando “Luzes da cidade”. Ao retornar publica vários artigos em jornais falando de suas viagens pelo mundo, salientando as contradições que estava encontrando na sociedade moderna, sendo estes artigos a inspiração para “Tempos modernos”. Juntamente com suas idéias sociais, Chaplin defendia que os EUA deveriam parar com a propaganda anti-comunista contra a União Soviética. Mesmo assim, Chaplin nunca declarou-se comunista, sendo que em um telegrama endereçado a Parnell Thomas, da Comissão de Atividades Antiamericanas escreveu: “Dizem que você quer perguntar se sou comunista. Deveria ter-me feito essa pergunta durante os dez dias em que permaneceu em Hollywood. Sobre o que quer saber, não sou comunista. Sou somente um fator da paz” (Claret, 2004, p. 126).

8. Taylor introduz o cronômetro das atividades produtivas na fábrica, cronometrando todas as fases do processo de produção, buscando que os trabalhadores tornassem seu trabalho mais produtivo. Braverman (1987, p. 97) mostra que em uma experiência de Taylor, ele conseguiu fazer com que um operário aumentasse em 276% a produção, com um simples incremento de 60,86% no salário. O exemplo deveria ser disseminado para os demais operários, mostrando, assim, que era possível aumentar as produtividade se os trabalhadores se empenhassem mais. Existem no filme várias referências à medição do tempo. A primeira imagem do filme é exatamente do relógio da fábrica, que marca a hora da entrada, do almoço, da troca de turno e da saída do trabalho. A todo instante, Carlitos bate o ponto no relógio-ponto da fábrica, mesmo quando está fugindo da polícia. Outras tantas referências irão aparecer no decorrer do filme, Carlitos perde a hora na loja de departamentos, quando dorme demais. Por acidente prensa o relógio de seu chefe imediato na fábrica, além disso, a “máquina de comer” promete que vai “eliminar a pausa para o almoço, aumentar a produção e ultrapassar a concorrência”. A própria realização do filme parecia insurgir-se contra o tempo moderno, sendo rodado de outubro de 1934 a agosto de 1935, um tempo bastante longo para os filme da época.

9. Esta dissociação entre o trabalho do operário que simplesmente cumpre ordens e não tem qualquer inserção sobre a forma como produz, fica claro em Braverman (1987, p. 53): “Assim, nos seres humanos, diferentemente dos animais, não é inviolável a unidade entre a força motivadora do trabalho e o trabalho em si mesmo. A unidade de concepção e execução pode ser dissolvida. A concepção pode ainda continuar e governar a execução, mas a idéia concebida por uma pessoa pode ser executada por outra.”

10. Esta inaptidão para outros tipos de trabalho que não o artístico foi presente na vida do próprio Chaplin, que tendo trabalhado como entregador de mercearia, recepcionista de consultório médico, garoto de recados entregador de papelaria, tipógrafo, vendedor e assoprador de vidros, só conseguiu sucesso profissional após tornar-se artista (Gomes, s/d, 11-13).

11. Em “O capital” Marx afirma que as formas de valor das mercadorias teriam uma “fala própria”: “Vê-se, tudo que nos disse antes a análise do valor das mercadorias, diz-nos o linho logo que entra em relação com outra mercadoria, o casaco. Só que ele revela seu pensamento em sua linguagem exclusiva, a linguagem das mercadorias. [...] Diga-se de passagem que a linguagem das mercadorias, além do hebraico, possui também muitos outros idiomas mais ou menos corretos” (Marx, 1983, p. 57). Marx quer dizer que o capital passa a assumir propriedades que não são suas, mas sim dos homens, ou seja, o capital domina o trabalho, o que é derivado do trabalho passa a ser considerado mérito do capital.

12. A órfã, amiga de Carlitos no filme, é a atriz Paulette Goddard (1910-1990). Chaplin era 21 anos mais velho que Paulette e ficaria casado com ela de 1932 a 1940.

13. “Ainda desta vez utiliza um subterfúgio para demonstrar a inutilidade da palavra na sua arte. Mima esta canção e canta-a numa língua imaginária de palavras feitas de sons diversos e onomatopaicos, de tal modo que esta língua, graças unicamente à interpretação do ator (já que o texto é inintelígevel, diverte, interessa e significa” (Leprohon, s/d, p. 205).

14. Os conceitos de trabalho concreto e trabalho abstrato foram introduzidos por Marx no livro 1 de “O capital” (Marx, 1983). O trabalho concreto produz valores de uso, enquanto o trabalho abstrato produz simplesmente valor.

15. Chaplin havia gravado outro final para o filme, em que a órfã teria virado freira e Carlitos como em filmes anteriores, terminaria sozinho. Preferiu o final mais otimista, em que os dois personagens ficam juntos.


Postado no Blog Sul21 em 05/02/2012